sábado, 25 de julho de 2009

Exú não é, e nem nunca foi, o diabo católico !

O sincretismo não é, como se pensa, uma simples tábua de correspondência entre orixás e santos católicos, assim como não representava o simples disfarce católico que os negros davam ao seus orixás para poder cultuá-los livres da intransigência do senhor branco, como de modo simplista se ensina nas escolas até hoje (Prandi, 1999). O sincretismo representa a captura da religião dos orixás dentro de um modelo que pressupõe, antes de mais nada, a existência de dois pólos antagônicos que presidem todas as ações humanas: o bem e o mal; de um lado a virtude, do outro o pecado. Essa concepção, que é judaico-cristã, não existia na África. As relações entre os seres humanos e os deuses, como ocorre em outras antigas religiões politeístas, eram orientadas pelos preceitos sacrificiais e pelo tabu, e cada orixá tinha suas normas prescritivas e restritivas próprias aplicáveis aos seus devotos particulares, como ainda se observa no candomblé, não havendo um código de comportamento e valores único aplicável a toda a sociedade indistintamente, como no cristianismo, uma lei única que é a chave para o estabelecimento universal de um sistema que tudo classifica como sendo do bem ou do mal, em categorias mutuamente exclusivas.No catolicismo, o sacrifício foi substituído pela oração e o tabu, pelo pecado, regrado por um código de ética universalizado que opera o tempo todo com as noções de bem e mal como dois campos em luta: o de deus, que os católicos louvam nas três pessoas do Pai, Filho e Espírito Santo, que é o lado do bem, e o do mal, que é o lado do diabo em suas múltiplas manifestações. Abaixo de deus estão os anjos e os santos, santos que são humanos mortos que em vida abraçaram as virtudes católicas, às vezes por elas morrendo.O lado do bem, digamos, foi assim preenchido pelos orixás, exceto Exu, ganhando Oxalá, o orixá criador da humanidade, o papel de Jesus Cristo, o deus Filho, mantendo-se Oxalá no topo da hierarquia, posição que já ocupava na África, donde seu nome Orixanlá ou Orixá Nlá, que significa o Grande Orixá. O remoto e inatingível deus supremo Olorum dos iorubás ajustou-se à concepção do deus Pai judaico-cristão, enquanto os demais orixás ganharam a identidade de santos. Mas ao vestirem a camisa de força de um modelo que pressupõe as virtudes católicas, os orixás sincretizados perderam muito de seus atributos originais, especialmente aqueles que, como no caso da sexualidade entendida como fonte de pecado, podem ferir o campo do bem, como explicou Monique Augras (1989), ao mostrar que muitas características africanas das Grandes Mães, inclusive Iemanjá e Oxum, foram atenuadas ou apagadas no culto brasileiro dessas deusas e passaram a compor a imagem pecaminosa de Pombagira, o Exu feminizado do Brasil, no outro pólo do modelo, em que Exu reina como o senhor do mal.Foi sem dúvida o processo de cristianização de Oxalá e outros orixás que empurrou Exu para o domínio do inferno católico, como um contraponto requerido pelo molde sincrético. Pois, ao se ajustar a religião dos orixás ao modelo da religião cristã, faltava evidentemente preencher o lado satânico do esquema deus-diabo, bem-mal, salvação-perdição, céu-inferno, e quem melhor que Exu para o papel do demônio? Sua fama já não era das melhores e mesmo entre os seguidores dos orixás sua natureza de herói trickster (Trindade, 1985), que não se ajusta aos modelos comuns de conduta, e seu caráter não acomodado, autônomo e embusteiro já faziam dele um ser contraventor, desviante e marginal, como o diabo. A propósito do culto de Exu na Bahia do final do século XIX, o médico Raimundo Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia e pioneiro dos estudos afro-brasileiros, escreveu em 1900 as seguintes palavras:Exu, Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que os afro-baianos têm grande tendência a confundir com o diabo. Tenho ouvido mesmo de negros africanos que todos os santos podem se servir de Exu para mandar tentar ou perseguir a uma pessoa. Em uma altercação qualquer de negros, em que quase sempre levantam uma celeuma enorme pelo motivo mais fútil, não é raro entre nós ouvir-se gritar pelos mais prudentes: Fulano olha Exu! Precisamente como diriam velhas beatas: Olha a tentação do demônio! No entanto, sou levado a crer que esta identificação é apenas o produto de uma influência do ensino católico (Rodrigues, 1935: 40).Transfigurado no diabo, Exu teve que passar por algumas mudanças para se adequar ao contexto cultural brasileiro hegemonicamente católico. Assim, num meio em que as conotações de ordem sexual eram fortemente reprimidas, o lado priápico de Exu foi muito dissimulado e em grande parte esquecido. Suas imagens brasileiras perderam o esplendor fálico do explícito Elegbara, disfarçando-se tanto quanto possível seus símbolos sexuais, pois mesmo sendo transformado em diabo, era então um diabo de cristãos, o que impôs uma inegável pudicícia que Exu não conhecera antes. Em troca ganhou chifres, rabo e até mesmo os pés de bode próprios de demônios antigos e medievais dos católicos.
Fonte : Reginaldo Prandi

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